segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Suplício

Eu queria toda essa lembrança
Largada no meio do mar
Mas as coisas estão guardadas 
No fundo do meu olhar
Se olhar nos meus olhos molhados
É bem capaz de encontrar
Uma carta, um giz, um caderno
Um canto na casa, um canto qualquer
Um isqueiro, uma linha, um cabelo
Um prato arranhado, o cabo torto de uma colher
Um pedaço de algodão
O calor entre as nossas mãos
Um riso de perder o ar
Um duro pedaço de pão
Algumas migalhas de ois e de tchaus
Uma doce desafinação...
Se olhar para dentro de mim
Certamente irá se encontrar
E verá que está mais em mim 
Que o ar que me anda a faltar
Eu queria que todas as coisas
Fugissem rajadas no ar
Mas não posso perdê-las de vista
Pois vazia, eu teria de me reinventar
Eu queria que um anjo descesse do céu
E viesse aqui me salvar
Me levasse para perto de Deus
Pra que eu te pudesse guiar
Mas eu sei que Deus não me tira daqui
Porque algo me falta aprender
E enquanto eu me agarro a você
Minhas pernas... elas não podem correr
Minhas mãos, a cabeça, o peito
Estão todos a se romper
Mas a carta, o pedaço de pão,
O isqueiro, essas eu guardei bem
Não queria essas coisas bonitas 
Lançadas ao vento ou lançadas ao mar
Eu queria voltar no tempo
E fazer tudo certo e fazer você ficar
Eu não te deixaria ir embora, pois saberia onde pisar
Então você me amaria de novo
E em seu peito seria o meu novo lar
Pela primeira vez...
Ou pela última vez.
Apenas uma vez!
Tudo de uma vez?
Era uma vez...

- Débora Paixão

(à Cia Depois do Fim, da Escola Livre de Teatro)