terça-feira, 23 de março de 2021

cismo

Somos a beira do abismo
Algo entre a verdade
e o cinismo

Viver é estar
a um passo do chão
ou em pura contemplação
do achismo

- Débora Paixão

domingo, 21 de março de 2021

A estranha que se mudou para minha casa

Aconteceu há aproximadamente 3 meses. Não sei dizer ao certo como aconteceu, mas de repente era isso. Eu sozinha em casa com uma estranha. E esta estranha me olhava todos os dias como a questionar-me: “o que faz aqui?”. Esta estranha que entrou em minha casa sem sequer ser convidada. Uma estranha cujo tamanho cabe minhas roupas. Uma estranha cuja voz me arrepiava. Não era uma estranha qualquer, como as pessoas estranhas que encontramos todos os dias na rua. Era uma estranha com mais carne que o comum, com mais presença que a própria matéria do corpo, com mais dentes do que cabem numa boca, com mais sombra que os móveis da minha casa. Essa estranha me olhava todos os dias, de propósito, de dentro, só para me deixar sem jeito e sem lugar. Ela se sentava no sofá junto comigo, se servia da minha comida e ainda era capaz de reclamar. Torcia o bico, revirava os olhos e exprimia qualquer gemido baixo o bastante para que eu não pudesse identificar e alto o suficiente para me fazer pensar em arremessar qualquer objeto em sua direção. Um copo, uma tampa de panela, uma colher de pau. O micro-ondas. A cada dia que passava eu me sentia mais sufocada. Ela parecia crescer dentro de casa e sua presença já não ocupava somente o sofá ou a cadeira ao lado. Seu corpo de mais carne que o comum, mais presença que a matéria do próprio corpo era capaz de ocupar a sala inteira. Era como se a sala se tornasse o corpo da estranha e era capaz de consumir todo meu oxigênio. Cheguei ao ponto de andar esgueirando-me em meu próprio apartamento para não ter de encostá-la, para não encontrá-la, mas por onde eu fosse, lá estava ela. Era preciso que eu fizesse algo a respeito. Entretanto, sempre que me levantava decidida a enfrentá-la, era tomada por pensamentos paralisantes e, imóvel, eu podia ouvir tais pensamentos tão dentro do ouvido quanto o absurdo que me locava: “Ela irá te engolir com sua boca cheia de dentes”. E todas as noites, enquanto me deitava ao seu lado, porque ela era incapaz de se retirar, eu me cobrava internamente: por que não consigo dirigir-lhe a palavra? Por que é que eu permito que me olhe todos os dias? Por dentro? Ela parecia buscar em mim algum resquício. Era como se ela precisasse de confirmação. Eu fechava meus olhos com força como a pedir que a escuridão de dentro apagasse tudo de vez e então eu adormecia. Até que ela passou a me encontrar em sonhos. Sua imagem estava colando-se em mim. E eu já não podia mais me livrar dessa estranha. Ela me vestia como uma fantasia e meu eu perdido em sua carne gritava por socorro, mas ninguém ouvia.

Ninguém!

Acordei desesperada e corri para olhar-me no espelho. E para o meu espanto, lá estava ela. Esfreguei meu rosto com sabão, enxaguei e lavei e enxaguei de novo. Três vezes. E ela ainda estava lá. Roubando-me de mim. Ela vestiu meu corpo com sua pele e meu sorriso com sua dentadura cheia de dentes. Me forçava a querer sorrir para o espelho enquanto dentro, o meu eu, gritava a pedir ajuda sem sequer poder chorar. Não havia lágrimas neste novo corpo. Um corpo cuja existência não pode ser confirmada pelo olhar do outro. Um corpo que não teve a chance de pertencer a algum lugar senão outro corpo dentro de uma mesma casa de onde não se saia por mais de 3 meses. Parada frente ao espelho vi aquela arcada dentária sorrir um sorriso que eu não queria numa boca que estava em mim, mas não era minha. Meus olhos estavam ocos de brilho, de presença e vida. Eram olhos estranhos que não viam outros olhos além dos meus no espelho. Sua imagem me aterrorizava como uma fratura exposta. Era minha existência fraturada, cindida em duas partes. Dentro e fora ali, ocupando o mesmo lugar. Ambos sem vida. Tentei lavar meu rosto pela décima quinta vez, mas a cada esfregada, eu me encontrava mais vazia. Era preciso que eu aceitasse que me fora ordenada esta nova condição: que ela agora era eu. Ou que agora eu era esta pessoa que nunca pertenceu a lugar algum, nem ao mundo nem ao próprio corpo. Vazia de sentido e carente de lugar. Eu não posso ser esta imagem descolada, dissociada da minha história, das minhas dores e alegrias. Dores, quando foi a última vez que algo doeu? Alegria, não sei se lembro... A imagem do espelho me assumia e me assustava como o vento entre as frestas da janela em dias de tempestade. A imagem que vejo me arrepia, me dá náuseas. Habita meu rosto e domina minha voz. E era ao mesmo tempo apenas o reflexo de uma casca oca. Não me reconheço em mim, na minha forma física de sempre e não mudei fisicamente. Peso o mesmo peso, uso a mesma boca, tenho a mesma cara, a mesma pele, entretanto não sou eu. Como, frente a isso, poderei saber que ainda existo? Como viver a agonia de não saber se será possível resgatar a vida que um dia morou aqui, com rosto e voz e tudo? Hoje uma estranha me assola, me coloca frente ao espelho, mexe a minha boca como se falasse, mas seu ritmo tem um atraso incompreensível! As palavras que me saem da boca, mexem na boca estranha. E eu? Já não sei se sou nem se posso. O que sei é que já não sinto. Antes de sentir é preciso ser e ser estranha a mim é não ser mais humana, é ser qualquer outra coisa, é muito mais coisa que ser. Se sou coisa, precisaria mudar o verbo, pois coisa não é capaz de ser. Coisa não é. É Isto! Resolvido o enigma da estranha que me aflige: não sou! Então, Isto não poderia ser nem sentir nem querer. Mas, de algum modo estranhamente absurdo, ainda sinto que quero algo. O que me torna ainda mais indefinível, incompreensível. Talvez não seja querer, talvez precisar... Já não há mais por onde perder-me nem por onde me encontrar. No entanto, há em mim algo que resiste, incólume, à espera da reintegração, do pertencimento completo, do encontro; e este algo, esta parte, recusa a casca oca e a dentadura, evita o espelho. Até que se descubra corpo ou apenas reflexo para poder dizer então, que enfim... é.
 
Débora Paixão