quinta-feira, 31 de outubro de 2019

31 de Outubro

A ÁGUA da chuva, do mar, do rio, dos lagos e também os peixes, o frio e todos os seres das águas. O seu poder de purificar, sua habilidade indomável de tomar a forma do lugar onde se encontra e sua capacidade encantadora de esparramar-se.
A TERRA, a areia, a grama, as pedras, as raízes, as flores, as árvores, todo alimento ofertado e também toda a fauna terrestre. Seu poder de curar e nutrir, sua habilidade indomável de doar tudo que tem para fazer transformar o que lhe toca. E sua capacidade encantadora de se fazer brotar, nascer.
O FOGO, o sol, o calor, a luz, os raios, mas também os astros. Seu poder iluminar e aquecer, sua habilidade indomável de modificar completamente o estado das coisas que cruzam o seu caminho. E sua capacidade inesgotável de se multiplicar da menor faísca à maior chama.
O AR, o vento, o sopro, os aromas, a respiração, mas também o céu e a sombra. Seu poder de transportar, sua habilidade indomável de expandir qualquer coisa que tente contê-lo. E sua capacidade encantadora de fazer desprender e não conter-se.
À toda natureza eu contemplo e agradeço. Entendo que aqui nada me pertence. Porém, a tudo, pertenço eu.

(Débora Paixão)

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

A pureza crua de Carina





         Desta vez quando a vi, embora a tivesse visto já de tantas formas quanto a intimidade de uma amizade que transpassa duas décadas é capaz de mostrar, foi como se a olhasse outra.

Ela não tinha mais aquela roupagem pesada como quem serve de cabideiro para segurar provisoriamente roupas que já não servem mais aos donos e - por este motivo - acabavam abandonadas. Não que ela tenha mudado, ou se transformado, mas era como se tivesse enfim rompido certa casca, um invólucro que paradoxalmente não lhe protegia do mundo (tal como as larvas) protegia-lhe, sobretudo dos perigos de sua própria insegurança.

De casca rompida, estava tão pura - que de longe mesmo quem não a conhecesse notaria novidade pelo viço de sua nova pele. Essa camada externa reveladora de marcas que as pessoas diariamente se põem a tentar - em vão - esconder. Pronto! Cheguei ao ponto crucial da história que queria contar aqui. Apresentei-lhes ela: Carina. Com C. E com licença poética, já lhes explico antes que venham os questionamentos pela nova grafia de seu nome, simplesmente porque - embora eu saiba que pagarei alto preço de escolher ousar na grafia do nome de uma pessoa cujo sol brilha em virgem - enfim, esta forma me parece mais pura.

Quero antes de prosseguir, explicar também que esta pureza não se aplica ao sentido pueril, angelical, casto de vestido branco entrando enganada na igreja, mas a pureza do estado natural mais puro do ser que alcança a si, instintivo, animal e selvagem que já não se pode negar.

Carina estava para esta pureza tanto quanto o mar está para água, ou para plástico. Estava tão para fora quanto era dentro.

Vibrava em seus olhos, a calma de quem sabe que a fruta leva seu tempo para amadurecer. E não sendo possível alcançá-la nem com braços nem com vara, espera que ela se desprenda por si própria. O olhar conclusivo de quem por fim entende que a vida é isso. Às vezes mais, às vezes menos, mas geralmente a exata dose disso.

No entanto, ela parecia não saber da sabedoria que lhe exalavam os poros e pode ser que seja fruto da magia intrauterina que lhe acomete. O útero essa caixa mágica cuja vida brota ramificada de novos seres. Nunca é só uma vida brotando ali.

Agora sim! Quero falar sobre o encontro entre ela e eu. Duas amigas que já de tantos encontros tiveram este: mais um. Embora sempre, os mesmos nunca. Embora nunca os outros sempre. Tínhamos a ideia de estar, apenas. Permanecer e sermos. E fomos.

Eu não tenho essa sabedoria que Carina carrega agora, para todas as coisas, mas tinha para algumas. Eu tinha essa sabedoria para ela e isso foi proporcionalmente novo e corriqueiro. Eu já conhecia tudo isso, mas não tinha visto assim, exposto dessa forma. Não tinha visto Karina saber ver isto como eu via. E vi.

Não parecia cansada, embora o ventre crescido pesasse para frente e pudesse lhe doer as costas. Levanto a hipótese de que talvez agora este peso extra viesse equilibrar o peso dos ombros. As roupas, bem como a vida, nunca pareceram tão justas.

Meus olhos de reparar sutilezas, notaram com suavidade, essa amiga que a vida me trouxe e que de um jeito torto - mas que ela entende - eu amo e acredito saber cuidar. Meus olhos de reparar sutilezas estavam ali fitando Carina enquanto falava, como quem pára para apreciar uma flor e de repente, tem a sorte de presenciar o breve e mágico instante, do desprender de uma pétala. Foi assim que eu vi a pureza de Carina enquanto tomava um sorvete na praça de alimentação do shopping.

Olhando à nossa volta, tínhamos um bom cenário, alguns figurantes que cumpriam rigorosamente seus papéis. E nenhum deles poderia sequer imaginar a trama que o destino teceria para nos trazer até aqui.  Na verdade, nem a gente poderia. O fato é que ele trouxe e eu parei para reparar.

 

Débora Paixão 




à Karina, minha grande - e agora maior ainda - amiga.

sábado, 22 de junho de 2019

Eu tenho em mim um amor dos grandes

Eu tenho em mim um amor dos grandes
Mas é mal compreendido
Nem por isso ele murcha
Nem por isso o amor desanda
Meu amor é grande e imenso
E ele marcha pelas ruas
Não fica guardado a sete chaves
Ele é assim, meio arreganhado
Qualquer um pode ver
Muito embora poucos o entendam, coitado!
Mas por ser grande assim nem liga
Elogia desconhecido
Abraça sem intimidade nas vezes em que não se cabe
Ri aparentemente sozinho porque ele sabe
Que as coisas belas (mesmo as tristes)
Guardam sempre outro sorriso
Uns pra já, outros pra depois
Na verdade ele é grande porque foi se acumulando de outros
E segue se reconhecendo
O meu amor é tão grande que é pra sempre
Quando doeu, curou
Quando chorou, libertou
O meu amor é tão grande que o único jeito de ele ser é livre
E ele é de uma liberdade tão grande e de uma grandeza tão libertadora
Que já não pode ser meu
Nem seu
Só lhe cabe ser de si mesmo.

(Débora Paixão)

quinta-feira, 9 de maio de 2019

velas

"castiçais, caravelas
o fim ou o começo
com o vento se paga

o mesmo vento
que uma vela ajuda,
outra vela apaga"

- Débora Paixão