segunda-feira, 30 de novembro de 2020

AVISO

Chamaram-me poetisa.

Não procurei saber quem,

Tampouco de onde veio

A mania de por gênero

Em matéria de espírito.

SOU POETA!

Exclamo porque acredito.


(Débora Paixão)




terça-feira, 24 de novembro de 2020

passarinho que sabe




















(imagem: pinterest.com/nanafernandes58)

se você me disser que vale a pena
então eu já nem escuto mais nada
sequer os passarinhos
por isso não me diga

palavras se perdem no tempo
e no vazio do espaço
passarinho é que sabe para onde voa
e porque canta


(Débora Paixão)


quarta-feira, 9 de setembro de 2020

ar

ainda ontem uma lagarta 
na ocasião de virar crisálida
me fez chorar
às vezes como ontem
penso em como tudo me emociona
o triste
o trivial
os detalhes...

as coisas aparentemente impenetráveis
me emocionam pela insistente resistência
de suas couraças

penso em tudo quanto é coisa 
que me emociona transbordando os olhos
e deixando a alma no aspecto sedoso
das pétalas...

um ninho
um desafino
um raio de sol que escapa no dia em o céu está encapado de nuvens

sinto-me por vezes
como um traço que saiu errado
porque a ideia quis que ele fosse lá
e o traço - sendo ele dono de si mesmo -
veio cá

por outras todas vezes
não me reconheço neste mundo
é como se tudo estivesse tanto
e eu sem fazer questão.
o sentido é coisa relativa
ora vem seguido de lógica
ora puramente coração.

eu sinto - através dos poros -
as asperezas das palavras e
o peso quase plumático do silêncio,
como estrelas que dormem
e mantém o brilho aceso.

voar pelos meus olhos
é desprender tudo que já esteve
já deu
passou
foi-se o tempo de ser em algo

estar em voo 
é estar em tempo de ser por si mesmo
a qualquer instante
pelo tempo que baste

não ver as coisas desta forma
é para mim ter na alma certa gravidade
que a deixa encostada no chão

eu por mim
fico com o ar

e com as asas




- Deboar Paixão

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

tenho costume de botar bastante reparo nas coisas...

Tenho costume de botar bastante reparo nas coisas de fora, mas quando reparo nas reparâncias do outro, sinto que alguém me viu de dentro.

(Débora Paixão)

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

como o ar

não ouço as vozes de nada
nem de ninguém
mas sinto
porque preciso e sei apenas sentir
sinto as vozes como se as visse
não com os olhos
mas com todo o resto
a poesia tem voltado a mim
não porque eu quisesse
embora sim e muito
mas porque eu precisava
e eu 
a encontro não quando quero
encontro
e vejo
e ouço
e sinto
tão apenas quando preciso

...

(Débora Paixão)

terça-feira, 14 de julho de 2020

Domingo

Domingo
Não importa qual
A comida é sempre a mesma
Todos na sala comendo
Até que alguém se lembra de algum causo engraçado
E todos riem
De repente alguém faz um comentário distraído
E inevitavelmente, a casa fica cheia de saudade...
Quando todos vão embora
Vão mais completos do que chegaram
Ainda que sintam ter deixado alguma coisa para trás...
Quando se encontra a família
Não se encontram apenas pessoas
Se encontram lembranças
O cheiro da casa
O jeito de quem já foi em alguém que ficou
As roupas passadas de geração em geração
A cada encontro vão se criando novas memórias
E se encontrando novas pessoas
Porque família nunca para de crescer
Se une, reforma
Muda de aparência
Mas nunca deixa de ser o que é
Um eterno lugar de encontro
Entre pessoas e memórias
Que não nos deixam esquecer quem somos
Nem como chegamos até aqui

por Débora Paixão

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Em ponto


Quando usei o primeiro ponto ele indicava o final quê?
Que fim levaria a fase se o ponto trouxesse também a vírgula?
E quando usei dois, que disse?
Se usei três deles, esperava o quê?
Que me dissessem em outras linhas... travessão?
Quantas margens atravessei?
Exclamei a beleza! Adverti o perigo!
Interrogam-me, enquanto a vida questionei
Quantas vezes estive entre vírgulas?
Aposto que mais estive entre aspas e não notei
Quantas vezes me pontuaram e quantas outras pontuei?
Quando foi que minha vida se mediu por métricas?
Seria minha vida uma história em soneto?
Seriam ricas minhas rimas?
Que sei?
Nem sei em que tempo escrevo agora
Se é pretérito desfeito
Se era presente do desatino
Olhando pra frente me vejo
Querendo saber mais como do que porquê
Passei do ponto
Olhei os sinais













Vem outro parágrafo


por Débora Paixão

domingo, 10 de maio de 2020

Maneira de Pão



Aqui em casa, todos os dias a gente come pão. De todos os tipos. Mas o francês é, sem dúvidas, o preferido. Ontem, minha mãe e eu nos aventuramos a fazer pão. Mais especificamente o pão francês. Eu, que nunca tive muita habilidade com massas, participei como mera espectadora. Queria aprender a habilidade de mexer na massa através dos olhos. Tive medo de desandar. Minha mãe não tem esse medo, minha vó também não tinha. Acho que para ser mãe talvez não se possa ter medo. Vai ver que ao se tornarem mães elas adquirem também a habilidade de disfarçá-los. Olhava para minha mãe e suas mãos incorporavam os ingredientes uns aos outros com a mesma certeza de quem sabe quem sabe que é melhor levar uma blusa porque vai esfriar. Quando olhava as mãos de minha mãe, via as mãos de minha avó. Ela disse: "vai menina, bota essa farinha sem medo". Pude ouvir minha vó em sua fala. Talvez a gente incorpore à nossa matéria os ingredientes de nossas mães. Talvez seja pelas suas mãos que a gente tome forma, desde cedo, no cuidado, no embalo, nas trocas. Enquanto mãe, mãos e massa descasavam, fiquei pensando nessa maneira de ser pão. Nesse exercício de paciência de deixar a massa crescer. É necessária a espera. É necessário o descanso. Embora uma parte não descanse nunca. Talvez mãe seja mais como o fermento que continua seu trabalho enquanto tudo descansa. Quando já tava bom de descansar as massas já boleadas, com a ajuda de um rolo de madeira se esticaram para poderem, mais tarde se enrolar e virar esse trenzinho lindo que é um pão francês, mas antes de assar: o corte. A faca precisa estar bem afiada, o corte precisa ser preciso. Como um bisturi. Dali, do corte, nasce o aspecto de pãozinho. O pão precisa do corte, tanto quanto eu precisei. Um corte preciso de bisturi no ventre esticado da minha mãe. Então afiei bem a faca para cortar a massa. Que alegria foi ver a massa se rasgar e tomar o aspecto de pão instantaneamente! Era um nascimento! Os olhares, meu e da minha mãe, eram de duas crianças que espiavam uma cena daquelas que dão vontade de bater palma e dar gritinhos de euforia. A gente precisava disso e o pão precisava do corte para poder criar aquela casquinha, característica típica de pão francês. Mães também precisam dessa casca. Talvez seja essa a casca que esconda o medo que a gente, de fora, não vê. O pão dentro do forno e a casa cheia do pão. O cheiro de pão, assim como o de café, é pura poesia. Já é uma explicação em si mesmo. O pão assou e não ficou do jeito que a gente queria. Esse é o problema de se criar expectativa. Mas por mais que tenhamos errado no tamanho, ou na quantidade de farinha, fez-se pão, de todo jeito. Tinha cheiro, tinha jeito e gosto de pão. Talvez eu não tenha crescido exatamente como minha mãe queria, mas cresci e fiz de mim o que sou. Pelas mãos e os ingredientes que minha mãe incorporou em mim. Depois dessa experiência, tenho certeza que comer pão nunca mais será a mesma coisa.


 por Débora Paixão,

dedicado a minha mãe Maria Luiza 
e todas as outras mães que nos trouxeram até aqui.

terça-feira, 31 de março de 2020

Olhar apassarinhado

(ao Manoel de Barros, quando finalmente virou passarinho)

No dia em que ele se foi daqui
Um passarinho me atravessou o olho por dentro
Eu fiquei vendo tudo apassarinhado
No oco do meu olho de dentro
O mundo de fora espiava o vento
De dentro da minha cabeça
Minhocas e borboletas valsavam pensando se era chegada a hora de voar rastejante pelas raízes do meu tronco

(Débora Paixão, de dentro do oco da minha árvore)


sábado, 22 de fevereiro de 2020

Dias assim

Em dias como esse meu coração fica alternando entre o que eu queria que não fosse e que não fosse o que eu queria Eu sei bem o que quero É que dias como hoje em que olho para os lados e vejo tanto vazio nenhum vazio parece maior que o de dentro Tem um vazio tão grande nos outros que chega a ecoar com o meu Somos tão completamente vazios que não sobra espaço para sermos outra coisa E eu penso em como seria se fôssemos todos feitos de alguma matéria bonita como nada que fora criado ou tenha existido até hoje E aí me lembro que há vazio demais para eu poder pensar sobre algo que não existe Fôssemos feitos dessa matéria seria estranho pois nada entenderíamos de sua beleza ou necessidades e acabaríamos deixando-a morrer às mínguas Não seria justo com o amanhã nem com o hoje que fôssemos mais do que somos Eu quero que a vida se estenda bonita de um jeito de pensar por si própria porque daqui de dentro a vida não tem porquê nem por onde A vida só tem existido mas ainda não é E a vida precisa ser.

(Débora Paixão)